Quem esteve presente ao Fórum Dissonâncias, promovido pelo já conhecido e recomendado Projeto Usina Cultural, corre sério risco de ter que entrar para o rol dos protagonistas de um acontecimento histórico. A suspeita não corre, nem de longe, na imaginação do Fausto Menta, seu realizador. Para usar um termo da moda, ela é compartilhada por ninguém menos que Pena Schmidt, o nome por trás de algumas das mais bem sucedidas experiências do universo musical do Brasil. Além dele, o músico e produtor Rômulo Fróes, figura de proa da novíssima cena, o experiente crítico musical Alex Antunes, que trabalhou nas revistas Bizz, Rolling Stone, Veja. Ambos estão na mesma situação que o produtor Plínio Profeta, ele mesmo, o criador do Stúdio RJ, o responsável pela composição da trilha musical do filme "O Palhaço".
Contaminados pelo idêntico vírus estão os jovens jornalistas Marcus Preto, Ronaldo Evangelista e Leonardo Lichote, cujas colunas em jornais de grande circulação e em blogs têm formado tendências e ajudado a definir o status de muitos dos nomes do cenário da música contemporânea no país. O músico Hélio Flandres, da banda Vanguart, eleita a melhor do ano de 2012, também especula acerca da possibilidade de ter "entrado para a história". Na condição de cataguasense, arrolar o testemunho de Daniel Figueiredo talvez soe cabotino. Melhor poupar o seu talento para a percepção dos fatos.
Evidentemente, todos sabem que a lógica da História é a de uma construção a posteriori. Essa antecipação aqui pode soar pretensiosa ou apressada demais. Corre-se o risco. Mas, afinal, não são o risco, a ousadia e a pretensão os responsáveis por alterarem os rumos da História? Sem eles, estaríamos, como disse Nelson Rodrigues, "berrando no deserto".
Imagino que talvez fosse isso que Francisco Inácio Peixoto pensava quando contratou um jovem arquiteto chamado Oscar Niemeyer para projetar o seu colégio e a sua casa. Imagino o que estariam pensando Humberto Mauro e Homero Cortes ao investirem tempo e dinheiro para fazer cinema na década de 1920, morando ambos numa cidadezinha de pouco mais de mil habitantes. Imagino os rapazes da Revista Verde correndo apressados aos Correios para enviar seus exemplares aos leitores de São Paulo. Teriam consciência da importância do gesto? Imagino o jovem Joaquim Branco e seus colegas de aventura experimentalistas, arranjando dinheiro e credibilidade para realizarem um Festival de Música, em pleno contexto da repressão política. Maria Alcina teria existido sem tal ousadia? Difícil saber. O que parece certo é que são as pequenas iniciativas que se transformam em grandes acontecimentos.
Portanto, não se pode baixar uma "vocação" pela internet. Ela também não se desenvolve sem audácia, trabalho, esforço, pesquisa, paixão. Cataguases não tem uma "vocação para a cultura". Cataguases não é uma "cidade cultural". Isso precisa ser desmentido para o bem da saúde mental dos seus habitantes. O sujeito nasce aqui e fica esperando a tal vocação tocar seu espírito. Poucos compreendem a necessidade de atraí-la com o esforço que isso exige. Alguns até dão a impressão de que existe um atalho para alcançar os benefícios da "aura" da cidade.
Cataguases, é preciso reconhecer, teve em Francisco Inácio Peixoto o seu "inventor". O modernismo da literatura teria ficado restrito a empoeiradas prateleiras de bibliotecas se ele não tivesse ousado apostar no risco de concretizar uma arrojada proposta conceitual. Alguns dirão que sua condição privilegiada afastava-o dos perigos da frustração e da incompreensão. Quem lê a sua entrevista concedida, em 1981, à pesquisadora Kátia Romanelli sabe como essa premissa é falsa. Seu desencanto transparece a cada apreciação da cidade. No entanto, a identidade sociocultural de Cataguases tem, tanto para o bem quanto para o mal, as suas digitais. Portanto, se não somos uma "cidade cultural", temos "história na cultura", o que, convenhamos é muito mais importante. Não se pode viver do passado, mesmo que seja o passado a razão do nosso prestígio no presente. Precisamos reinventar nosso passado. Sempre.
O Fórum Dissonâncias traz de volta a possibilidade de que uma empreitada possa imprimir novas configurações à esta nossa identidade em reconstrução. Se cito nomes de pessoas e não de instituições é porque acredito muito mais nas primeiras, no poder delas de desejar descalçar suas botas apertadas no meio da batalha que vai provocar a queda do imperador. As segundas, ao contrário, podem proteger na força de seu prestígio a inépcia ou a imperícia de seus dirigentes e representantes. Penso tanto nas públicas quanto nas instituições privadas. A incompetência não faz distinção. É generosa com os dois segmentos.
Fausto Menta, certamente, não sabe ainda o estrago que provoca. Talvez jamais venha saber como sua decisão de reformular o Projeto Usina Cultural pode mudar a história sociocultural de Cataguases. Mas sua inocência das implicações não ficará intacta por muito tempo. Acredito que se isto já não acontece, logo, logo ele a perceberá no aumento gradativo da sua horda de detratores, pois, de novo Nelson Rodrigues: "Nada nos humilha mais do que a coragem alheia". Logo, logo ele se verá diante de invejas, torpezas, cretinices, mesquinhez. Logo, logo também, se ainda não acontece, ele arrebanhará os indefectíveis bajuladores e oportunistas. Não demora e ele descobrirá quão sutil pode ser a fronteira entre as grandezas e as baixezas do reconhecimento. Espero que ele saiba reconhecer a natureza da sua missão e possuir muita força para levá-la adiante sem precisar entregar a alma aos demônios.
Cataguases começou a escrever com o Fórum Dissonâncias uma parte significativa da história da cultura brasileira e uma parte muito importante da sua própria história. O tempo vai nos dizer se esse pequeno registro teve o mérito de ser premonitório. Se, ao contrário, ele se transformar numa grande bobagem, cito mais uma vez o grande dramaturgo brasileiro: "Pior para os fatos". (Com fotos de Mara Isa para Hernani Fotografia Profissional)
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